Tradução de Francisco Silva
Revisão de Vitória Auer

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Pedra e Semente

Mira Mattar


Maneesh embrulhado num panfleto de evacuação da IOF. Créditos: @Yasser_Gaza, Nov. 2023 


Em abril de 2024, o Ministro da Saúde de Gaza declarou que trinta e duas pessoas, das quais vinte e oito eram crianças, tinham morrido de subnutrição desde Outubro do ano passado. De acordo com um comunicado lançado em julho por um grupo independente de especialistas das NU, a partir do momento em que uma criança morre de fome e sede, “torna-se irrefutável que a fome se instalou”.

Descrever a fome em Gaza como um “desastre humanitário” é colocá-la como uma crise fora da história. Discutir a fome em Gaza através desta lente sugere que se trata de um acidente, de uma consequência lamentável de uma qualquer calamidade natural, ou de um qualquer conflito (o companheiro falsamente neutro do “desastre humanitário”). As mortes por fome em Gaza não são um acidente. As pessoas que morrem de subnutrição foram mortas pela mesma lógica que tem supervisionado mais de um século de expropriação e erradicação dos palestinianos da sua terra. 

No início deste ano, vi uma imagem de uma ovelha morta a tiro numa rua em Khan Younis, Gaza – toda a intangível especificidade da sua vida humilde esboroando-se pelo seu belo agasalho. “Até as ovelhas?”, chorava a minha mãe ao telemóvel. “Especialmente as ovelhas”, respondi. 

Nos primeiros dias da incursão sionista na Palestina, os pinheiros recentemente plantados deixaram cair as suas agulhas ácidas no solo. A vegetação rasteira murchou e morreu. Os pastores palestinianos não podiam mais pastorear as suas ovelhas e cabras. Os animais ficaram esfomeados e os meios de subsistência dos pastores caíram em ruína. Estes pinheiros foram plantados pelo Jewish National Fund (JNF), uma organização sionista criada em 1901 e descrita por Fayez Sayegh como “um dos instrumentos centrais da colonização sistemática”. O JNF, que é detentor ou possui jurisdição de mais de 90% da terra da colónia conhecida por Israel, plantou as árvores para invocar uma “região selvagem europeia, criando um ambiente familiar “natural” para a maioria europeia dos colonizadores judeus”. 

Desde a sua fundação (e particularmente desde a Nakba), a JNF tem, sob um manto ilusório de ambientalismo, deslocado centenas de milhares de famílias palestinianas, destruído terras de agricultura, demolido casas, e desenraizado vegetação indígena para limpar a terra para florestas, parques e reservas naturais nas ruínas das aldeias palestinianas. Não teve importância que os pinheiros não se tivessem adaptado ao solo local, que precisassem de repetidas replantações, que exigissem mais água com a idade e que fossem vulneráveis a pestes e ao fogo. As árvores eliminaram a história. Em outubro de 2022, quando finalmente consegui ir à Palestina – de onde a minha família fugiu em 1948 –, mostraram-me um mapa cravejado de pequenos pontos vermelhos. Cada um destes pontos assinalava uma localidade palestiniana destruída pelas organizações sionistas antes e durante a Nakba, muitas das quais entretanto já replantadas. O mapa pulsava tão intensamente que praticamente sangrava. 

Entendo a terra como indistinguível daquilo que ela sustenta: animais, insetos, agricultura, indústria, habitação, infraestrutura. A terra, em resumo, é vida, e a vida é, nas palavras do académico palestiniano Steven Salaita, “existência” [beingness]. O sionismo é a violência que não tem limites para garantir que a existência da Palestina seja apagada. Com isto, assume-se como salvador de um lugar supostamente estéril dos seus nativos supostamente inaptos, quando, na realidade, as terras da Palestina se inserem no “Crescente Fértil” – conhecido pelo seu solo rico, pela pluviosidade elevada, os habitats variados e a biodiversidade proliferante – cultivada durante séculos antes da Nakba. Esta terra palestiniana roubada forma agora “o núcleo da agricultura do estado de Israel”. 



Um componente essencial dos esforços de erradicação sionistas, particularmente em Gaza, é a dependência forçada dos palestinianos em relação à “ajuda humanitária”, em resultado da anexação de terras agrícolas e do bloqueio total de Gaza desde 2007, que impõe controlos rigorosos a tudo e a todos que entram e saem. Mesmo antes do genocídio em curso, cerca de 80% dos 2 milhões de habitantes de Gaza dependia desta ajuda, que, já de si escassa, tem sido de tal forma controlada desde 7 de outubro de 2023 que nem frutas de caroço podem entrar – não apenas porque os caroços podem (supostamente) virar armas, mas também porque os caroços podem ser plantados de volta à existência. Na raiz, é a existência palestiniana que a entidade sionista precisa de negar constantemente para constantemente se criar a si própria. É extrativa, canibal. Devora. Gaza morre de fome. 

O uso da fome como uma tecnologia de genocídio em Gaza não é uma aberração recente, mas antes uma continuação dos esforços sionistas de longa duração para apagar a vida palestiniana – o colonialismo de ocupação, no fim de contas, é uma estrutura em desenvolvimento, não um evento. Como descreveram Neve Gordon e Muna Haddad, depois da Segunda Intifada em setembro de 2000, o estado sionista destruiu mais de 10% da terra agrícola de Gaza, arrasando quintas, desenraizando mais de 226 mil árvores, bombardeando o aeroporto, destruindo o porto marítimo, reduzindo as áreas em que os pescadores podiam pescar (e abatendo pescadores que transgredissem esses limites), e restringindo o movimento e as mercadorias, tudo isto produzindo uma insegurança alimentar tão severa que em apenas dois anos a subnutrição infantil duplicou.

Em 2005, depois do desmantelamento dos colonatos em Gaza, o estado sionista criou uma zona tampão entre si e Gaza, na qual apenas era permitido plantar “culturas de folha curta como o espinafre, o rabanete e a alface”, de forma a não obscurecer a visão dos soldados nas torres de vigia à volta. Em 2006, Dov Weisglass, conselheiro do então primeiro-ministro Ehud Olmert, explicou que a estratégia era “colocar os palestinianos em dieta, mas não deixá-los morrer de fome”. A dieta de Gaza, como é assustadoramente conhecida, foi criada enquanto forma de punição coletiva, guerra económica, e engenharia social destinada a des-desenvolver Gaza e a forçar a dependência em relação à ajuda humanitária. Calculou-se a quantidade exata de comida necessária para manter a população no limiar da fome. 

A lista de produtos banidos de Gaza desde o bloqueio de 2007 vai desde os designados luxos – como o mel ou o azeite – até aos itens que supostamente têm um “uso-duplo”, como o cimento, os fertilizantes e os químicos usados para manter limpo o abastecimento de água, algo que se tornou crescentemente necessário à medida que as sucessivas ofensivas militares sionistas (em 2008-09, 2012, 2014, 2021) destruíam mais infraestruturas. 




É neste cenário – com um comunicado das NU em 2015 prevendo que Gaza se tornaria inabitável em 2020) – que o estado sionista, e os poderes nele investidos, iniciaram o presente massacre. Dois meses depois do 7 de outubro de 2023, a Integrated Food Security Phase Classification (um organismo das NU que avalia a segurança alimentar) detetou uma grave insegurança alimentar em toda a Faixa de Gaza e alertou para a fome – muito antes da primeira pessoa ter morrido de fome. Meses mais tarde, o estado sionista continua a negar a fome em massa, ou a sua intencionalidade, manipulando a linguagem estrategicamente manipulável do direito humanitário internacional. 

O direito humanitário internacional – isto é, o direito que regula a conduta de guerra – requer uma linguagem escorregadia, que consiga deshistoricizar e obscurecer de forma a se manter legítima na sua reverência perante a ordem imperialista mundial. Como documentou extensivamente a historiadora Jessica Whyte, a proibição de se usar a fome como um método de guerra foi apenas codificada em 1977, em grande parte graças aos esforços de ativistas legais de países que tinham sido descolonizados há pouco tempo (incluindo o egípcio Georges Abi-Saab), que até então não tinham sido ainda incluídos em discussões do direito internacional. Por outras palavras, a fome permaneceu uma tática aceitável até que as nações que foram historicamente subjugadas por ela ganharam poder dentro das supostas esferas legais “internacionais”. A entidade sionista foi a única a opor-se à codificação da proibição da inanição. 

Na década anterior, detalha Whyte, os EUA tinham usado Agente Laranja e outros desfolhantes no Vietname, alegando que as plantações serviam de escudo aos combatentes vietnamitas e que, por isso, destruí-las era uma tática legítima, mesmo que esta destruição significasse destruir recursos imprescindíveis à vida. Como resultado, era do seu interesse garantir que a proibição da inanição pudesse ser interpretada de forma a permitir que “cercos de fome alargados” permanecessem legais tanto tempo quanto o que fosse preciso para atingir combatentes, não civis. 

A aparente distinção entre o “combatente” ativo – e por isso punível – e o “civil” – e por isso inocente – foi explorada vezes sem conta pelos poderes imperiais para minar esforços de resistência anticoloniais. E o estado sionista contemporâneo continua a apoiar-se nesta lógica. Quando cada um dos civis pode ser reposicionado como um potencial combatente e tornar-se, assim, um “escudo humano”, ou quando o Hamas alegadamente se esconde debaixo de hospitais, ou dentro de incubadoras neonatais – a violência contra a população como um todo é legitimada. O inimigo é toda a gente, todas as coisas, todos os lugares, todo o tempo. A fome causada pela destruição de objetos imprescindíveis à vida (padarias, terras agrícolas, moinhos, sistemas de esgoto, eletricidade, escolas, casas, estradas) – e a subsequente retenção da ajuda humanitária – torna-se meramente, então, a trágica consequência “humanitária” de um objetivo militar legal e necessário, em vez de uma empreitada intencionalmente genocida. 

A contínua violência ecocida e genocida justificada desta forma é, desde há muito tempo, acompanhada por uma negação simultânea desta violência ecocida e genocida contínua. Como em 1948, quando as forças sionistas injetaram tifo num aqueduto em Akka e depois informaram os mandatários britânicos na Palestina que as perto de setenta mortes resultantes tinham sido causadas pelas condições de sobrelotação e de suposta falta de higiene em que os refugiados viviam. Ou nessa mesma primavera, quando as milícias sionistas atacaram agricultores palestinianos que se preparavam para debulhar o seu trigo e colher o seu milho e que foram obrigados a fugir ou a arriscar morrer para permanecer nas suas quintas, enquanto as suas tecnologias agrícolas e todos os rastos da sua presença eram destruídos para abrir espaço para os supostos verdadeiros zeladores da terra.

Ou como no início deste ano, quando as forças sionistas abriram fogo contra os palestinianos em Gaza que tentavam obter farinha de camiões de ajuda humanitária – camiões que têm sido bloqueados, queimados e saqueados por colonos e soldados – e depois alegaram que a correria das pessoas tentando ter acesso à comida tinha colocado em perigo as forças sionistas, forçando-as a massacrar mais de uma centena de palestinianos esfomeados. Ou como quando as pessoas estão tão exaustas pela fome que já não têm sequer a habilidade física para andar para encontrar comida. Ou quando recorreram a ração para animais e a relva para sobreviver. Ou quando não podem amamentar devido à subnutrição. Ou não podem alimentar os seus bebés com leite em pó porque tanto o leite em pó como a água para o fazer são escassos. Ou quando as crianças se veem obrigadas a agachar-se junto a poças de água suja e a pôr as mãos em concha para beber. E os sionistas e seu aliados negam tudo isto enquanto os soldados devoram McDonald’s de graça ou se banqueteiam com comida deixada em casas abandonadas por palestinianos em fuga, chamando a isto heroísmo. 

Tudo o que o estado sionista e seus aliados fizeram desde o 7 de outubro de 2023 tem sido feito com total conhecimento das condições existentes. Quando o Ministro da Defesa israelita Yoav Gallant declarou a 9 de Outubro de 2023 que não iria haver “eletricidade, comida ou combustível” em Gaza, tratava-se da culminação lógica de décadas de severidade e destruição da vida e da infraestrutura que a mantém. Chamar catástrofe humanitária a uma fome estratégica com mão humana é disfarçá-la de catástrofe natural. E fazer isso é disfarçar a natureza de inocência. E fazê-lo é perpetuar o mito de que a existência da entidade sionista nas terras entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo é destino divino. E fazer isto é apagar quem e aquilo que já existia aqui – uma coalescência de pessoas culturalmente heterogéneas com os seus centros industriais, portos, editoras e centros culturais, as suas montanhas vibrando com cardos e tomilho, os seus laranjais e oliveiras – e que foram arrancadas deste sítio: afastadas, massacradas, envenenadas, aterrorizadas, enclausuradas, exiladas, mortas à fome.



O continuum da violência sionista é contrariado, antes de tudo, pela resistente e contínua presença dos palestinianos na Palestina. É ao seu lado, para lá das fronteiras espaciais e temporais, que o resto de nós – aqueles de nós que compreendem que nós somos o que está em jogo - resiste continuamente, casualmente, ferozmente e diariamente de todas as formas possíveis. Os estados colonizadores são construídos tendo por base redes fabricadas de isenções, exceções, lacunas, mitos, abstenções e interpretações sobrepostas a realidades e presenças. Dependem de absurdidades como o facto de o direito internacional poder justificar a fome de uma população se se puder argumentar que a fome é acidental, não intencional. 


Créditos: @AbubakerAbedW, Abril 2024


A existência palestiniana para além, sem, ao lado e em tensão com o direito tem tudo a ver com intenção. É Um-Naseem a plantar hortelã em Rafah, são as rosas amarelas de Abubaker Abed, é Hamada Shaqoura a alimentar o maior número de pessoas possível, é cada um dos GoFundMe, é cada semente e cada animal salvos, são prisioneiros em greve de fome, são pessoas em Gaza a usar os folhetos de evacuação das Forças de Ocupação Israelitas para enrolar manaeesh no início do genocídio. Não é o direito internacional que vai salvar os palestinianos. Vamos salvar-nos a nós próprios juntos porque, tal como qualquer outra pessoa, tal como tu, os palestinianos querem a vida, não apenas o direito a ela. A resistência à tua própria aniquilação é um reflexo profundo; cresce sem esforço. Sabemos que o caroço é uma arma e sabemos que o caroço é uma semente. 



Este ensaio foi escrito entre Abril e Julho de 2024 e originalmente publicado em inglês, pela Vittles Magazine. 

Mira Mattar escreve ficção e poesia. É autora de Yes, I Am a Destroyer (Ma Bibliothèque, 2020), Affiliation (Sad Press, 2021), The Bow (2021) e de And most of all I would miss the shadows of the tree’s own leaves cast upon its trunk by the orange streetlight in the sweet blue darks of spring (Veer2, 2024). O seu trabalho foi publicado na Granta, The Chicago Review, Berfrois, Mute, e Salvage. Integra, ainda, a equipa de edição da Mute e da Decolonial Hacker. Mira vive e trabalha em Londres. 

Agradecemos à Mira e à Vittles a cedência deste texto e a sua permissão para o publicar em português.



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2 setembro 2024
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